domingo, 17 de novembro de 2019

Momento de poesia

PORT WINE
O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova-York e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bars.
O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.
Nas sobremesas finas, as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape-Town, em Sidney, em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportamos em barris.
As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos dos cais, em armazéns,
comerciantes trocam por esterlinos
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.
Em Londres os lords e em Paris os snobs,
no Cabo e no Rio os fazendeiros ricos
acham no Porto um sabor divino,
mas a nós só nos sabe, só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.
O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo, liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! – ou morre.
JOAQUIM NAMORADO

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Ser Professor

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A GRANDE DÚVIDA: QUE COMER E BEBER?

A GRANDE DÚVIDA: QUE COMER E BEBER?

«A semana passada, deixei de comer chouriços. E presunto. E fiambre. E mortadela!!! Esta semana, deixei de comer queijo. “Afecta a mesma molécula das drogas duras”, dizia um estudo. Eu não quero ter nada a ver com isso, gosto muito de queijo, mas não quero ter nada a ver com drogas, muito menos ser visto como um agarrado ao queijo. Acabou-se com o queijo cá em casa. Também já tinha acabado com o pão, por isso…
O mês passado deixei de beber vinho branco. Um estudo dizia que fazia mal a não sei quê. Se calhar era cancro também. Passei a beber só tinto que dizia um estudo ser ideal para uma série de coisas. Esta semana voltei a beber branco porque entretanto saiu um estudo a dizer que afinal o branco até tem propriedades que fazem bem e muito tinto é que não. Comecei a reduzir no tinto mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.
Cortei nas azeitonas também porque um estudo dizia que têm demasiada gordura, são muito insaturadas, ou lá o que é, mas não parece nada bom.
Andava praticamente a peixe até perceber que os portugueses comem peixe a mais e são, por isso, prejudiciais ao ambiente. Eu sei que não moro no continente mas como sou português, e ainda contam todos para o estudo, sei lá, os que estão e os que não estão, e como eu não quero ser acusado de inimigo do ambiente, ando a cortar no peixe também. Especialmente no atum que está cheio de chumbo e o bacalhau também porque causa daquele estudo que saiu sobre a quantidade de sal mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.
Esta semana saiu um estudo a dizer que afinal o vinho em geral faz mal. Fiquei devastado. Há dois meses foram as couves roxas. Vi até um especialista na televisão dizer que não devíamos comer nada cuja cor seja roxa; “é sinal que não é para comer”, dizia. Arroz também quase não como porque engorda, quanto mais esfregado pior, e saiu um estudo a dizer que implica com uma função qualquer mais ou menos delicada. Não é a reprodutora porque acho que essa é com a soja. Dá hormonas femininas aos homens, e consequentes mamas, o raio da soja (!) e prejudica as funções todas. Não, soja nem pensar!
Leite também já há muito que me livrei dele. Foi, salvo erro, desde que saiu um estudo a dizer que o nosso corpo não está preparado para leites. Por isso, leite não. Sumos de frutas também dispenso enquanto não resolverem o problema levantado no estudo que apontava para… não sei muito bem para quê, mas apontava e não era nada excitante mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.
Carne vermelha, claro, também não. Ataca o coração, diz o estudo. Galinha nem sonhar porque umas estão cheias de gripe e as outras encharcadas de antibióticos. Além de que carne de galinha a mais, como dizia outro estudo, impacta com o desenvolvimento dental, o que até parecia óbvio mas ninguém percebia, pois as galinhas não desenvolvem dentes. Cortei a galinha há muito tempo. Porco? Só a brincar. É óbvio que não há cá porco. Não chegassem as salsichas e afins, ainda veio este outro estudo, ou ainda não leu? Pois então, diz que o excesso de carne de porco pode provocar uma diminuição de massa cinzenta e o aumento dos ciclos atópicos do mastóides singular. Ninguém quer passar por isso! Você quer? Eu não mas, também, acho que compreende, não quero morrer assim de qualquer maneira. Esqueça-se a carne de porco, pelo amor da santa!
Ah!… Já me esquecia do glúten! Glúten, também não. É que nem pensar! Durante muitos anos nem sabia que existia, mas desde que me apercebi da existência de semelhante coisa arredei tudo o que tivesse glúten. Deixa-me pouca escolha mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.
Ovos! Claro que também não como ovos. Primeiro porque não sou nenhum ovíparo e depois por causa das quantidades de coisas que aquele estudo que saiu a semana passada dizia. É um rol senhores, um rol e colesterol! Vão ver e admirem-se! Os ovos! Quem diria os ovos… Enfim, é a vida: ovos nem vê-los! Como a manteiga: é só gordura! Desde que acabei com o pão e com o queijo, a manteiga também, por assim dizer, deixou de fazer falta. Ainda a usava para fritar ovos mas agora também não se pode comer ovos… Pois, a manteiga, dizia o estudo, é só gordura animal e animais não devem comer a gordura uns dos outros. Pareceu-me um bom fundamento e acabei com a manteiga.
Ia fazer uma salada. Sem muito azeite, claro, porque, compreendem, não quero morrer assim de qualquer man
eira, sem sal, naturalmente e vinagre só do orgânico, porque, compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira…
É quando recebo um email com o título “Novo Estudo Aconselha a Ingestão Moderada de Saladas e Hortaliças”.
Enchi um copo de água, filtrada, naturalmente, de garrafa de vidro, e sorvi um golo ávido. Espero que não me faça mal.»


Fernando Eloy
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domingo, 30 de junho de 2019

UMA HISTÓRIA GUARDADA NA MEMÓRIA DAS PEDRAS.

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Aqui no mundo dos vivos, perdido entre o fim do ano letivo e a burocracia que se reproduz a si própria, ocorreu-me que neste ano todos os dias choveu. Uma chuva de pedras que não teve origem na escassez de água, mas na falta de bom senso de gente que, na sua piedade cristã, não conseguiu conter a sua compulsão para partilhar seixos connosco. Receio que, se essas pedras tivessem memória, muitas estórias teriam para contar.
Debaixo de um céu onde tudo acontece, permito-me constatar que persiste a tendência para o português alvitrar com supino conhecimento sobre tudo e sobre nada. Para além dos habituais assuntos que qualquer português domina no país dos três F – Folhetins e Futebol (o terceiro é o povo andar há séculos a ser comido com um F e ainda não se ter dado conta disso) – o outro tema de que toda a gente fala de cátedra é sobre a vida dos professores. Entre um palitar de dentes, uma bejeca, o intervalo da bola, ou o passar do cesto do pão à mesa ao jantar, não há cidadão zeloso que não se deleite a conjurar sobre esta classe profissional.
Um povo sereno que povoa um país repleto de almas pacíficas que, assim que o objeto de conversa são os professores, se torna incapaz de guardar só para si os seus dotes para a lírica no vernáculo da língua de Camões.
Mas os pensamentos estavam prestes a sucumbir…
Ainda a noite não tinha aportado quando, rendido ao cansaço, finalmente me reconciliei com o sofá para ser conquistado pelo sono. Mareando ao som de um televisor que se vai afastando, desenrolou-se um sonho dentro do sono.
Longe da humanidade consegui ver que transcorreu o ano em que os professores foram publicamente glorificados com as maiores considerações de que há memória. Os ilustríssimos senhores que, na ausência de outra ocupação mais nobre, são fazedores de opinião e a classe política mais digna, altruísta, honesta e competente do mundo e arredores, enalteceram o papel dos professores que, mais do que ninguém, foram quem verdadeiramente se preocupou com os estudantes, colocando-os acima dos seus interesses pessoais e familiares.
Nos arredores (desse mundo) toda essa atenciosa massa crítica de pais que jamais tentou denegrir a imagem da nossa classe, reconheceu que os professores fazem todos os sacrifícios pelos seus alunos, fazendo ecoar as suas vozes a agradecer tudo aquilo que no passado fizeram por si e a dedicação que agora empregam na formação dos seus filhos. Defendem-nos contra qualquer calúnia valorizando as incontáveis ocasiões em que os atendemos fora de horas ou o imenso tempo não remunerado que despendemos em diversas atividades e visitas de estudo para dar oportunidade aos seus rebentos para ver mais além e chegarem à tal terra prometida, um lugar comummente conhecido como “poderem ter um futuro melhor do que o meu”.
Os media fazem questão de reservar períodos de emissão a divulgar o verdadeiro trabalho dos profissionais de educação, tornando visível o tempo que investem na formação das nossas crianças e jovens, no trabalho fora do horário laboral, serões, noites, fins de semana e feriados.
O governo finalmente reconhece que esta é uma profissão que obriga os professores a um nomadismo que pode durar décadas, considerando ser da mais pura justiça atribuir ajudas de custo de deslocação e de alojamento para que os profissionais não sejam obrigados a pagar do próprio bolso para desempenhar um trabalho vital para o futuro do país.
Admite o estado de burnout da maioria dos docentes, atestando ser esta uma profissão de elevado desgaste que exige uma urgente revisão legislativa que garanta uma vida ativa menos prolongada.
Para lá do horizonte, uma multidão em coro grita palavras de apoio acompanhadas por salvas de palmas aos professores, enquanto unicórnios cor-de-rosa voam sobre um arco-íris…
Estando deleitado a degustar este devaneio divinal, sou abruptamente acordado por uma realidade que ultrapassa a ficção, para onde sou despejado. À minha volta há seixos espalhados por todo o lado num caminho forrado de pedras.
Do nada, sou atingido por uma pedra que me vocifera aos ouvidos “Outra vez de férias, seus malandros!”. Bem-vindo de volta à nossa realidade onde abundam pessoas sem nenhum sinal de cupidez, que transpiram um apreço ímpar pelos professores. Gente esclarecida e manifestamente sem sinal de inveja, que ignora que o trabalho docente não se resume às aulas, confundindo o período de férias dos professores com o dos alunos – natural para quem, sem vestígio de culpa, deixa as crianças no “armazém” com o mesmo ânimo de quem deixa o carro no estacionamento e o vai buscar ao fim do dia esperando que não tenha nenhum risco e, de preferência, até venha lavadinho a brilhar e com o depósito cheio.
É só mais uma ferida perdida no mapa de um corpo vestido de nódoas e mazelas dos mais recentes apedrejamentos, misturadas com as antigas cicatrizes de incompreensão e desdém que me puniram por me ter empenhado em levar uma vida dedicada ao ensino.
Foi cascalho que não me conseguiu derrubar, porquanto eu já estava caído por terra pela enorme rocha arremessada há semanas do alto do monte, que quase me esmagou. Em redor, combalidos todos nós ainda estamos a tentar recuperar desse ato ignóbil. Um enorme rochedo que repousa triunfante diante de nós testemunhando o mais desprezível evento de que há memória neste recanto. Um pedregulho vil e cobarde oferecido às mãos de toda uma nação nada hostil, que foi incitada a erguê-lo e lançar sem dó nem piedade sobre a nossas cabeças, oferecido num espetáculo para saciar as frustrações de uma multidão sedenta de sangue.
Gente de bem que assim pôde regressar em serenidade às suas vidas perfeitas depois de consumado tão cristão ato cívico.
Ainda me molesta a ferida de uma outra pedra que me conta sobre o espírito tímido e complacente que não se acanhou em culpar os professores pelas mortes numa estrada esquecida desde sempre, fazendo deles moeda de troca por alcatrão.
Depressa, um acervo de pedras enche-me os ouvidos com um manancial de estórias que nos sentenciaram o corpo e marcaram a alma num julgamento inquisitório sem direito a defesa.
Ó gente de divina inconsciência, quem dera conseguissem entender não serem os professores o problema, mas parte da solução!
Facilidades não constam do nosso léxico, pois não obtivemos o nosso ganha-pão às custas de nepotismos ou de exibição de coloridos cartões com siglas. Não desviámos fundos, nem verbas para paraísos fiscais, não fugimos ao fisco, não recebemos qualquer tipo de ajudas de custo, nem prestámos falsas informações para receber dinheiro indevidamente, pois custeamos tudo do nosso bolso para podermos trabalhar e até financiando materiais que faltam nas escolas, no estômago e na alma das nossas crianças, muitas delas órfãs de pais vivos.
Num país de familiares e amigos que tresanda a um cheiro nauseabundo de pequena e grande corrupção e onde a fuga fiscal é prática comum, todas essas pessoas que não são exemplo para ninguém, estarem a perseguir uma das poucas profissões onde não é possível sequer fugir aos impostos, nem pratica um dos piores exercícios de degradação social, é motivo para terem vergonha e comprarem um espelho.
Não subimos na carreira por nomeação, nem usamos o poder como trampolim para chegar a altos cargos públicos e empresariais a receber milhares de euros para aquecer os estofos de cadeiras em reuniões e a desempenhar cargos tomando decisões comprometedoras para o país, das quais mais tarde ninguém se responsabiliza graças a uma conveniente amnésia seletiva. A formação contínua, relatórios e trabalho árduo com projetos, estando sujeitos a avaliação com aproveitamento mínimo e cotas para podermos subir um mísero escalão para receber mais umas parcas dezenas de euros, faz parte do pacote de privilégios que vieram agregados à nossa profissão.
A adulação da cobiça do alheio fê-los confundir-nos com aqueles que ao fim de poucos anos de trabalho são presenteados com reformas milionárias e subvenções vitalícias, mesmo depois de gestão danosa do país, em cima da mesma terra onde muitos professores nem reforma recebem morrendo em serviço, enquanto outros para terem direito a uma pensão cada vez mais curta terão de somar 45 anos a trabalhar ou a arrastarem-se.
Uma multidão escudada debaixo de telhados de vidro, que arremessou pedras dolorosas embebidas no veneno da hipocrisia afirmando que os professores só falam e pensam nos seus interesses sem querer saber dos alunos, fica agora silenciada pois, a maioria já não tem memória da última vez que atravessou os portões de uma escola ou colaborou com os professores numa atividade escolar.
Pais que declaram que as lutas laborais dos professores prejudicam os seus filhos, deveriam ter o mesmo voluntarismo e interesse pelos alunos e apresentarem-se nas escolas quando os convocamos, ou aparecerem regularmente para acompanhar a vida escolar dos seus filhos, em vez de só darem sinal de si à porta das escolas no início e no fim do dia para despejar e recolher os seus rebentos. É que, na verdade, quem está constantemente com os seus filhos, durante o horário laboral e fora dele, são os professores e não grande parte dos pais, os quais, se fizessem corretamente o seu trabalho de educar os seus filhos em casa, não dariam tanto trabalho aos professores a fazer aquilo que não constitui a sua principal competência.
Mas, também, os pais que raramente vêm à escola não se incomodem em vir porque, se não fosse a crescente indisciplina, a interminável burocracia que amavelmente a tutela nos delega e os longos programas para cumprir, nós nem saberíamos o que fazer com tanto tempo livre na escola e junto das nossas famílias. Afinal, temos de ter trabalho suficiente que justifique os tais dez mil euros mensais que recebemos que mal chegam para pagar as nossas despesas.
Naquele mundo ideal que deixei no meu sofá, há muito que estariam a cobrar a crise àqueles que são os verdadeiros culpados, em vez de os premiarem com altos cargos, pensões escandalosas e condecorações, reconhecendo que não deveriam ter sido os professores a pagar durante anos essa fatura do seu próprio bolso por uma situação da qual não foram responsáveis.
A docilidade destas gentes recordistas em violência doméstica, quando o assunto de conversa se relaciona com docentes, transfiguram-se por completo tornando-os cidadãos honrados de opinião respeitável. Uns indelicados que em cada duas palavras empregam três palavrões, têm dificuldade em cumprir horários e regras, cospem para o chão, urinam em qualquer canto, despacham todo o género de objetos para a rua e pela janela das viaturas fazendo dos espaços públicos lixeiras a céu aberto, são o exemplo acabado de quem nos pode dar lições de cidadania e civismo com duas pedras na mão.
Debaixo do apedrejamento público na mais humilhante e repugnante campanha persecutória para com os professores, conseguimos chegar a bom termo, cumprindo com o nosso dever com enorme responsabilidade e brio, sem prejudicar os nossos alunos que nunca deixámos de acompanhar, mesmo quando outros lhes falharam. Isto não faz de nós heróis, porque heróis já nós somos ao conseguirmos ser professores num país que nos tem tratado tão mal.
Independentemente de tudo aquilo que tanta gente altamente recomendável, de bons usos e costumes que não se coíbe em humilhar os professores, possa dizer sobre nós, nós cumprimos a nossa parte o melhor que pudemos, mesmo sem nos terem contabilizado como tempo de serviço o excelente trabalho que temos estado a desempenhar e que fizeram evoluir tanto um país que era pouco mais do que analfabeto.
Mais do que em palavras, a nossa resposta veio com trabalho de qualidade, como o demonstram os bons resultados alcançados pelos nossos alunos nos estudos internacionais de que já ninguém fala. Só é lamentável que este magnífico trabalho que os professores têm realizado, para toda esta gente de idoneidade duvidosa, simplesmente seja trabalho que não conta para nada e deva ser apagado.
Arrastando-me, consegui arranjar forças e coragem para não desistir e chegar ao fim da estrada. Levantaram-se mãos, mãos sem pedras para erguer os caídos, ajudando-nos uns aos outros a nos mantermos de pé e de cabeça levantada. Com nódoas, maltratados e esgotados, conseguimos resistir ao mais pérfido ataque feito a uma classe profissional de que há memória. Chegar de rastos não fez de nós uns vermes, pois esses estão marcados com poeira de pedra nas mãos e cobiça fácil escrita no rosto. Isso fez de nós uns resistentes.
Dizem-nos que somos fracos, mas como poderá isso ser se já não sentimos dor nas pedras que nada nos dizem de novo?
Dizem-nos que somos orgulhosos, quando nos olham de cima quando estamos pelo chão caídos.
Dizem-nos que fracassámos, mas fomos nós quem vos educou e formou… sendo vós a prova viva de que, em algum momento, nós falhámos.
Eu queria acreditar que tudo o que dizem de nós são apenas palavras vãs, mas as feridas que ainda não sararam e as cicatrizes que nos marcaram lembram-nos que há palavras que ferem desmedidamente mais do que um murro no estômago.
Pedras que fazem com que os algarismos “942” signifiquem tanto para nós. Por tudo isso não é de bom tom não saber entender a dor que encerram as pedras usando gracejos para confundir o seu significado com indicativos de telefone. Este número é o símbolo de um dos maiores valores e direitos conquistados em democracia – o direito ao trabalho com direitos. Um trabalho honesto que cumprimos e nos foi roubado, mas que jamais poderá ser desconsiderado e, muito menos, ridicularizado. O 942 simboliza o RESPEITO pelo trabalho, pelo nosso trabalho, um trabalho honesto no meio de um país corrompido.
Orgulhoso da profissão, só me cabe fazer aquilo que outros não foram capazes – FELICITO TODOS OS PROFESSORES!
Colegas que, mesmo magoados por esta miséria moral de um país ingrato que fecha os olhos aos corruptos e persegue quem trabalha, com enorme nobreza e coragem tudo fizeram para que os seus alunos conseguissem chegar ao fim de mais um ano letivo com todo o acompanhamento e instrução que lhes foi possível dar. Debaixo desta chuva de pedras que tivemos de carregar às costas e um conjunto de crianças e jovens ao colo, conseguir chegar ao final deste ano com o sentimento do dever cumprido, foi um feito prodigioso que não está ao alcance dos medíocres.
Poderão continuar a desbocar-se à vontade com palavras de despeito a atirar-nos pedras, mas não se cansem, pois, por mais que nos golpeiem, jamais conseguirão atingir a nossa DIGNIDADE profissional.
Parabéns a todos os professores portugueses por não terem sucumbido ao mais difícil ano das nossas vidas profissionais.
E quanto às pedras aguçadas que amavelmente nos atiraram, arrecadámo-las para um dia contarem a nossa história, UMA HISTÓRIA GUARDADA NA MEMÓRIA DAS PEDRAS.

Carlos Santos… em desabafo

sábado, 29 de junho de 2019

É urgente o amor



É urgente o amor É urgente um barco no mar É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Eugénio de Andrade

domingo, 23 de junho de 2019

Momento de pesia :ANTÓNIO GEDEÃO "Saudades da Terra"

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"Saudades da Terra"

Uns olhos que me olharam com demora,
não sei se por amor se caridade,
fizeram-me pensar na morte, e na saudade
que eu sentiria se morresse agora.
E pensei que da vida não teria
nem saudade nem pena de a perder,
mas que em meus olhos mortos guardaria
certas imagens do que pude ver.
Gostei muito da luz. Gostei de vê-la
de todas as maneiras,
da luz do pirilampo à fria luz da estrela,
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras.
Gostei muito de a ver quando cintila
na face de um cristal,
quando trespassa, em lâmina tranquila,
a poeirenta névoa de um pinhal,
quando salta, nas águas, em contorções de cobra,
desfeita em pedrarias de lapidado ceptro,
quando incide num prisma e se desdobra
nas sete cores do espectro.
Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria
quando galga lambendo o dorso dos navios,
quando afaga em blandícias de cândida luxúria
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.
E também gostei muito do Jardim da Estrela
com os velhos sentados nos bancos ao sol
e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho
e a adormecê-la
e as meninas a correrem atrás das pombas
e os meninos a jogarem ao futebol.

A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer,
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas,
gostei muito de ver
erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas.
Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente,
e se amam com os dedos aflitos, entre cruzados,
de olhos postos nos olhos, angustiadamente.
E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados,
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras
grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras.
Mas ... saudade, saudade propriamente,
essa tenaz que aperta o coração
e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.
Saudade, se a tivesse, só de Aquela
que nas flores se anunciou,
se uma saudade alguém pudesse tê-la
do que não se passou.
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer - quem sabe? - ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.

Triste de quem não tem,
na hora que se esfuma,
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.

ANTÓNIO GEDEÃO - "Máquina de Fogo" - 1961

terça-feira, 11 de junho de 2019

Morreu Ruben de Carvalho. Histórico militante do PCP tinha 74 anos

Morreu Ruben de Carvalho. Histórico militante do PCP tinha 74 anos

Ruben de Carvalho, histórico militante do PCP, morreu esta terça-feira aos 74 anos, dá conta a SIC Notícias. Para além da carreira na política, destacam-se no seu percurso profissional os cargos que assumiu enquanto jornalista.
Numa nota enviada às redações, o Secretariado do Comité Central do PCP lamentou a morte de Ruben de Carvalho e informou que o histórico dirigente morreu "em consequência de problemas de saúde que exigiram internamento hospitalar".
Recorda o partido que Ruben de Carvalho "assumiu uma intervenção destacada na atividade do PCP, tendo desempenhado importantes tarefas, cargos e responsabilidades".
"Ruben de Carvalho teve uma vida de intervenção e de luta na resistência antifascista, no movimento associativo estudantil, abraçou com intensidade a Revolução de Abril e defendeu os seus valores e conquistas", recorda o Comité Central, sublinhando que o dirigente comunista "deixou à sociedade portuguesa um contributo de grande relevo no conhecimento da música, na sua dimensão artística, cultural e social, no plano nacional e internacional, das suas raízes populares à sua dimensão erudita".
Ruben de Carvalho foi chefe de redacção da 'Vida Mundial', redator coordenador de 'O Século' e chefe de redação do semanário 'Avante', a partir do nº 1 da série legal.
Foi, adicionalmente, membro do Conselho de Opinião da RTP em 2002, comentador da SIC Notícias e membro das 'comissões juvenis de apoio' à candidatura do General Humberto Delgado.
Atualmente, o jornalista era responsável na Câmara Municipal de Lisboa pelo Roteiro do Antifascismo e membro do Comité Central do PCP.
Ruben de Carvalho, o comunista melómano que gostava de 'blues'
A casa de Ruben de Carvalho era um espelho da sua vida política como militante e dirigente do PCP, melómano e homens de letras -- um rés-do-chão cheio de livros, posters e discos.
O rés-do-chão era, na verdade, uma garagem, na Amadora, Lisboa, transformada em casa-biblioteca. Amplo, cheio de estantes, livros, discos de vinil. Era onde Ruben de Carvalho conservava a coluna de som que comprou quando ainda era jovem e, há anos, ainda ligava para ouvir a música de que gostava, do fado ao jazz, passando pelos blues, a música americana em que era especialista.
Lá estavam coleções de jornais, alguns posters a anunciar acontecimentos do PCP ou concertos. Foi, desde a primeira edição, em 1976, um dos organizadores da festa do 'Avante!'.
Ruben era o único membro do atual Comité Central do PCP que tinha estado preso nas prisões da PIDE, a polícia política do regime ditatorial derrubado pelo 25 de Abril de 1974. "Tiveram a fineza de me apresentar todas as prisões do fascismo", ironizou, em entrevista ao Observador, em 2016.
Notícias ao MinutoComunista morreu hoje aos 74 anos© PC
Politicamente, foi um defensor da solução governativa em que o PCP apoiou, no Parlamento, com o PEV e BE, o Governo minoritário do PS, e tinha tido a experiência autárquica na Câmara de Lisboa, como vereador da CDU, durante os anos em que António Costa foi presidente do município (2007-2013), que conheceu bem -- "andei com ele ao colo" - por os pais serem amigos.

"Votei favoravelmente esta solução que não marca nenhuma alteração particular da parte do PCP. Sempre defendemos a necessidade de uma alternativa de Esquerda para a governação. Não tiramos nenhum coelho do chapéu", afirmou ao Observador, recordando que em 2015 "criaram-se condições objetivas", os resultados eleitorais, "e subjetivas para que isso acontecesse".
Ruben Luís Tristão de Carvalho e Silva nasceu em Lisboa em 21 de julho de 1944 e aderiu ao PCP em 1970, depois de ter passado pela direção da comissão pró-associação dos estudantes do ensino liceal e da Faculdade de Letras, ainda na década de 1960.
Foi preso pela PIDE seis vezes (esteve em Caxias e no Aljube), a primeira das quais em 1961 e a última em 7 de abril, 18 dias antes do golpe de Estado. Antes de ser militante comunista, foi também membro das comissões juvenis de apoio à candidatura de Humberto Delgado (1958) e da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), nos anos 1960 e 1970.
Após o 25 de Abril e da Revolução dos Cravos, pertenceu ao MDP/CDE e, no I Governo Provisório foi chefe de gabinete do ministro Pereira de Moura e foi deputado à Assembleia da República eleito em 1995.
Numa altura em que eram poucos ou nenhuns os festivais de música em Portugal, a Festa do Avante!, em que Ruben de Carvalho foi um dos organizadores, foi cartaz para muitas novidades. Num mundo dividido pela Guerra Fria, entre EUA e URSS, o festival mostrou, em palco, o Coro dos Cossacos de Kuban, mas também o 'rock' os Dexy's Midgnight Runners, o 'folk' de Judy Collins, e ainda assistiu à estreia, em Portugal, de Chico Buarque.
Ruben de Carvalho foi, além de jornalista, autor de vários livros, uns mais políticos, como o 'Dossier Carlucci-CIA', sobre o primeiro embaixador dos EUA em Lisboa após a revolução, e outros mais culturais, como 'As Músicas do Fado' ou 'As Palavras das Cantigas', em que organizou um livro póstumo de José Carlos Ary dos Santos.
Nos últimos tempos, tinha na Antena 1 o programa 'Radicais Livres', em que debatia e falava com Jaime Nogueira Pinto sobre temas da atualidade. Um à Esquerda e outro à Direita, recordou Nogueira Pinto hoje ao Público, se uma discussão chegasse a um impasse, havia solução: "Uma piada punha tudo no sítio".
Ruben de Carvalho, o "intelectual comunista"

"Um intelectual comunista, um homem de combate de ideias", assim definiu Jerónimo de Sousa o camarada Ruben de Carvalho.

Ao recordar o histórico comunista, o líder do PCP destacou "um homem que assumiu diversas tarefas, cargos e responsabilidades" e que, ao longo do seu percurso, se destacou pela "participação e intervenção tanto na luta anti-fascista, como no movimento estudantil que levou a prisões sucessivas, a última das quais a 7 de abril de 1974".
Ruben de Carvalho, que morreu aos 74 anos, "com toda responsabilidade enquanto membro do Comité Central, teve uma contribuição importantíssima na Festa do Avante", sobretudo no domínio "dos programas musicais". Foi, em suma, "um homem do jornalismo, da rádio, da imprensa e que deu contribuição importante para a nossa cultura".
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também lamentou a morte do dirigente do PCP, recordando-o como um "defensor da liberdade desde jovem", que "deixa um rasto de saudade".
Já o primeiro-ministro considerou que a "morte do antigo dirigente comunista Ruben de Carvalho representa a perda de um um amigo e de homem de cultural".

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Fotos das cidades Porto e Gaia, com fundo musical da Tuna Universitária do Porto.

Bom dia!



Cantado É melhor ser alegre que ser triste Alegria é a melhor coisa que existe É assim como a luz no coração Mas pra fazer um samba com beleza É preciso um bocado de tristeza É preciso um bocado de tristeza Senão, não se faz um samba não Falado Senão é como amar uma mulher só linda E daí? Uma mulher tem que ter Qualquer coisa além de beleza Qualquer coisa de triste Qualquer coisa que chora Qualquer coisa que sente saudade Um molejo de amor machucado Uma beleza que vem da tristeza De se saber mulher Feita apenas para amar Para sofrer pelo seu amor E pra ser só perdão Cantado Fazer samba não é contar piada E quem faz samba assim não é de nada O bom samba é uma forma de oração Porque o samba é a tristeza que balança E a tristeza tem sempre uma esperança A tristeza tem sempre uma esperança De um dia não ser mais triste não Falado Feito essa gente que anda por aí Brincando com a vida Cuidado, companheiro! A vida é pra valer E não se engane não, tem uma só Duas mesmo que é bom Ninguém vai me dizer que tem Sem provar muito bem provado Com certidão passada em cartório do céu E assinado embaixo: Deus E com firma reconhecida! A vida não é brincadeira, amigo A vida é arte do encontro Embora haja tanto desencontro pela vida Há sempre uma mulher à sua espera Com os olhos cheios de carinho E as mãos cheias de perdão Ponha um pouco de amor na sua vida Como no seu samba Cantado Ponha um pouco de amor numa cadência E vai ver que ninguém no mundo vence A beleza que tem um samba, não Porque o samba nasceu lá na Bahia E se hoje ele é branco na poesia Se hoje ele é branco na poesia Ele é negro demais no coração Falado Eu, por exemplo, o capitão do mato Vinicius de Moraes Poeta e diplomata O branco mais preto do Brasil Na linha direta de Xangô, saravá! A bênção, Senhora A maior ialorixá da Bahia Terra de Caymmi e João Gilberto A bênção, Pixinguinha Tu que choraste na flauta Todas as minhas mágoas de amor A bênção, Sinhô, a benção, Cartola A bênção, Ismael Silva Sua bênção, Heitor dos Prazeres A bênção, Nelson Cavaquinho A bênção, Geraldo Pereira A bênção, meu bom Cyro Monteiro Você, sobrinho de Nonô A bênção, Noel, sua bênção, Ary A bênção, todos os grandes Sambistas do Brasil Branco, preto, mulato Lindo como a pele macia de Oxum A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim Parceiro e amigo querido Que já viajaste tantas canções comigo E ainda há tantas por viajar A bênção, Carlinhos Lyra Parceiro cem por cento Você que une a ação ao sentimento E ao pensamento A bênção, a bênção, Baden Powell Amigo novo, parceiro novo Que fizeste este samba comigo A bênção, amigo A bênção, maestro Moacir Santos Não és um só, és tantos como O meu Brasil de todos os santos Inclusive meu São Sebastião Saravá! A bênção, que eu vou partir Eu vou ter que dizer adeus Cantado Ponha um pouco de amor numa cadência E vai ver que ninguém no mundo vence A beleza que tem um samba, não Porque o samba nasceu lá na Bahia E se hoje ele é branco na poesia Se hoje ele é branco na poesia Ele é negro demais no coração

domingo, 12 de maio de 2019

Traçadinho



Vejo a lua duas vezes (hic) E o céu está a abanar Que diabo aconteceu Como é que aqui vim parar O chão está a tremer Isto agora vai ser bom Queria cantar um fadinho Mas não acerto com o tom Desta vez estou mesmo à rasca Vou-me pirar de mansinho Não volto àquela tasca Não bebo mais traçadinho (refrão) Tenho a guitarra partida Esta noite é para a desgraça Não conheço esta avenida Afinal o que se passa Esta vida são dois dias Esta vida é ir e vir Porque um homem bebe uns copos Começa logo a cair Desta vez estou mesmo à rasca Vou-me pirar de mansinho Não volto àquela tasca Não bebo mais traçadinho(refrão

Açorda de coentros e alhos



Alhos, coentros e sal Também se faz com poejo Esse prato que afinal É do no nosso Alentejo Depois do alhos pisados E com a água a ferver Corta-se o pão aos bocados Está pronto, vamos comer É fácil fazer Dá pouco trabalho É água a ferver Coentros e alho Coentros e alho E água a ferver Dá pouco trabalho E é fácil fazer Com o panito bem duro E a rabano a acompanhar O azeite bom e puro Não há melhor paladar Açorda de bacalhau Com azeitonas pisadas Também não é nada mau Com umas sardinhas assadas É fácil fazer Dá pouco trabalho É água a ferver Coentros e alho Coentros e alho E água a ferver Dá pouco trabalho E é fácil fazer Lembro-me quando era moço Antes de ir para o trabalho O meu pequeno almoço Uma boa açorda de alho Já minha avó me dizia A força que a açorda dá Comia a todos os dias E dez filhos estão cá" É fácil fazer Dá pouco trabalho É água a ferver Coentros e alho Coentros e alho E água a ferver Dá pouco trabalho E é fácil fazer

Tributo Musical a Zeca Afonso