domingo, 30 de junho de 2019

UMA HISTÓRIA GUARDADA NA MEMÓRIA DAS PEDRAS.

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Aqui no mundo dos vivos, perdido entre o fim do ano letivo e a burocracia que se reproduz a si própria, ocorreu-me que neste ano todos os dias choveu. Uma chuva de pedras que não teve origem na escassez de água, mas na falta de bom senso de gente que, na sua piedade cristã, não conseguiu conter a sua compulsão para partilhar seixos connosco. Receio que, se essas pedras tivessem memória, muitas estórias teriam para contar.
Debaixo de um céu onde tudo acontece, permito-me constatar que persiste a tendência para o português alvitrar com supino conhecimento sobre tudo e sobre nada. Para além dos habituais assuntos que qualquer português domina no país dos três F – Folhetins e Futebol (o terceiro é o povo andar há séculos a ser comido com um F e ainda não se ter dado conta disso) – o outro tema de que toda a gente fala de cátedra é sobre a vida dos professores. Entre um palitar de dentes, uma bejeca, o intervalo da bola, ou o passar do cesto do pão à mesa ao jantar, não há cidadão zeloso que não se deleite a conjurar sobre esta classe profissional.
Um povo sereno que povoa um país repleto de almas pacíficas que, assim que o objeto de conversa são os professores, se torna incapaz de guardar só para si os seus dotes para a lírica no vernáculo da língua de Camões.
Mas os pensamentos estavam prestes a sucumbir…
Ainda a noite não tinha aportado quando, rendido ao cansaço, finalmente me reconciliei com o sofá para ser conquistado pelo sono. Mareando ao som de um televisor que se vai afastando, desenrolou-se um sonho dentro do sono.
Longe da humanidade consegui ver que transcorreu o ano em que os professores foram publicamente glorificados com as maiores considerações de que há memória. Os ilustríssimos senhores que, na ausência de outra ocupação mais nobre, são fazedores de opinião e a classe política mais digna, altruísta, honesta e competente do mundo e arredores, enalteceram o papel dos professores que, mais do que ninguém, foram quem verdadeiramente se preocupou com os estudantes, colocando-os acima dos seus interesses pessoais e familiares.
Nos arredores (desse mundo) toda essa atenciosa massa crítica de pais que jamais tentou denegrir a imagem da nossa classe, reconheceu que os professores fazem todos os sacrifícios pelos seus alunos, fazendo ecoar as suas vozes a agradecer tudo aquilo que no passado fizeram por si e a dedicação que agora empregam na formação dos seus filhos. Defendem-nos contra qualquer calúnia valorizando as incontáveis ocasiões em que os atendemos fora de horas ou o imenso tempo não remunerado que despendemos em diversas atividades e visitas de estudo para dar oportunidade aos seus rebentos para ver mais além e chegarem à tal terra prometida, um lugar comummente conhecido como “poderem ter um futuro melhor do que o meu”.
Os media fazem questão de reservar períodos de emissão a divulgar o verdadeiro trabalho dos profissionais de educação, tornando visível o tempo que investem na formação das nossas crianças e jovens, no trabalho fora do horário laboral, serões, noites, fins de semana e feriados.
O governo finalmente reconhece que esta é uma profissão que obriga os professores a um nomadismo que pode durar décadas, considerando ser da mais pura justiça atribuir ajudas de custo de deslocação e de alojamento para que os profissionais não sejam obrigados a pagar do próprio bolso para desempenhar um trabalho vital para o futuro do país.
Admite o estado de burnout da maioria dos docentes, atestando ser esta uma profissão de elevado desgaste que exige uma urgente revisão legislativa que garanta uma vida ativa menos prolongada.
Para lá do horizonte, uma multidão em coro grita palavras de apoio acompanhadas por salvas de palmas aos professores, enquanto unicórnios cor-de-rosa voam sobre um arco-íris…
Estando deleitado a degustar este devaneio divinal, sou abruptamente acordado por uma realidade que ultrapassa a ficção, para onde sou despejado. À minha volta há seixos espalhados por todo o lado num caminho forrado de pedras.
Do nada, sou atingido por uma pedra que me vocifera aos ouvidos “Outra vez de férias, seus malandros!”. Bem-vindo de volta à nossa realidade onde abundam pessoas sem nenhum sinal de cupidez, que transpiram um apreço ímpar pelos professores. Gente esclarecida e manifestamente sem sinal de inveja, que ignora que o trabalho docente não se resume às aulas, confundindo o período de férias dos professores com o dos alunos – natural para quem, sem vestígio de culpa, deixa as crianças no “armazém” com o mesmo ânimo de quem deixa o carro no estacionamento e o vai buscar ao fim do dia esperando que não tenha nenhum risco e, de preferência, até venha lavadinho a brilhar e com o depósito cheio.
É só mais uma ferida perdida no mapa de um corpo vestido de nódoas e mazelas dos mais recentes apedrejamentos, misturadas com as antigas cicatrizes de incompreensão e desdém que me puniram por me ter empenhado em levar uma vida dedicada ao ensino.
Foi cascalho que não me conseguiu derrubar, porquanto eu já estava caído por terra pela enorme rocha arremessada há semanas do alto do monte, que quase me esmagou. Em redor, combalidos todos nós ainda estamos a tentar recuperar desse ato ignóbil. Um enorme rochedo que repousa triunfante diante de nós testemunhando o mais desprezível evento de que há memória neste recanto. Um pedregulho vil e cobarde oferecido às mãos de toda uma nação nada hostil, que foi incitada a erguê-lo e lançar sem dó nem piedade sobre a nossas cabeças, oferecido num espetáculo para saciar as frustrações de uma multidão sedenta de sangue.
Gente de bem que assim pôde regressar em serenidade às suas vidas perfeitas depois de consumado tão cristão ato cívico.
Ainda me molesta a ferida de uma outra pedra que me conta sobre o espírito tímido e complacente que não se acanhou em culpar os professores pelas mortes numa estrada esquecida desde sempre, fazendo deles moeda de troca por alcatrão.
Depressa, um acervo de pedras enche-me os ouvidos com um manancial de estórias que nos sentenciaram o corpo e marcaram a alma num julgamento inquisitório sem direito a defesa.
Ó gente de divina inconsciência, quem dera conseguissem entender não serem os professores o problema, mas parte da solução!
Facilidades não constam do nosso léxico, pois não obtivemos o nosso ganha-pão às custas de nepotismos ou de exibição de coloridos cartões com siglas. Não desviámos fundos, nem verbas para paraísos fiscais, não fugimos ao fisco, não recebemos qualquer tipo de ajudas de custo, nem prestámos falsas informações para receber dinheiro indevidamente, pois custeamos tudo do nosso bolso para podermos trabalhar e até financiando materiais que faltam nas escolas, no estômago e na alma das nossas crianças, muitas delas órfãs de pais vivos.
Num país de familiares e amigos que tresanda a um cheiro nauseabundo de pequena e grande corrupção e onde a fuga fiscal é prática comum, todas essas pessoas que não são exemplo para ninguém, estarem a perseguir uma das poucas profissões onde não é possível sequer fugir aos impostos, nem pratica um dos piores exercícios de degradação social, é motivo para terem vergonha e comprarem um espelho.
Não subimos na carreira por nomeação, nem usamos o poder como trampolim para chegar a altos cargos públicos e empresariais a receber milhares de euros para aquecer os estofos de cadeiras em reuniões e a desempenhar cargos tomando decisões comprometedoras para o país, das quais mais tarde ninguém se responsabiliza graças a uma conveniente amnésia seletiva. A formação contínua, relatórios e trabalho árduo com projetos, estando sujeitos a avaliação com aproveitamento mínimo e cotas para podermos subir um mísero escalão para receber mais umas parcas dezenas de euros, faz parte do pacote de privilégios que vieram agregados à nossa profissão.
A adulação da cobiça do alheio fê-los confundir-nos com aqueles que ao fim de poucos anos de trabalho são presenteados com reformas milionárias e subvenções vitalícias, mesmo depois de gestão danosa do país, em cima da mesma terra onde muitos professores nem reforma recebem morrendo em serviço, enquanto outros para terem direito a uma pensão cada vez mais curta terão de somar 45 anos a trabalhar ou a arrastarem-se.
Uma multidão escudada debaixo de telhados de vidro, que arremessou pedras dolorosas embebidas no veneno da hipocrisia afirmando que os professores só falam e pensam nos seus interesses sem querer saber dos alunos, fica agora silenciada pois, a maioria já não tem memória da última vez que atravessou os portões de uma escola ou colaborou com os professores numa atividade escolar.
Pais que declaram que as lutas laborais dos professores prejudicam os seus filhos, deveriam ter o mesmo voluntarismo e interesse pelos alunos e apresentarem-se nas escolas quando os convocamos, ou aparecerem regularmente para acompanhar a vida escolar dos seus filhos, em vez de só darem sinal de si à porta das escolas no início e no fim do dia para despejar e recolher os seus rebentos. É que, na verdade, quem está constantemente com os seus filhos, durante o horário laboral e fora dele, são os professores e não grande parte dos pais, os quais, se fizessem corretamente o seu trabalho de educar os seus filhos em casa, não dariam tanto trabalho aos professores a fazer aquilo que não constitui a sua principal competência.
Mas, também, os pais que raramente vêm à escola não se incomodem em vir porque, se não fosse a crescente indisciplina, a interminável burocracia que amavelmente a tutela nos delega e os longos programas para cumprir, nós nem saberíamos o que fazer com tanto tempo livre na escola e junto das nossas famílias. Afinal, temos de ter trabalho suficiente que justifique os tais dez mil euros mensais que recebemos que mal chegam para pagar as nossas despesas.
Naquele mundo ideal que deixei no meu sofá, há muito que estariam a cobrar a crise àqueles que são os verdadeiros culpados, em vez de os premiarem com altos cargos, pensões escandalosas e condecorações, reconhecendo que não deveriam ter sido os professores a pagar durante anos essa fatura do seu próprio bolso por uma situação da qual não foram responsáveis.
A docilidade destas gentes recordistas em violência doméstica, quando o assunto de conversa se relaciona com docentes, transfiguram-se por completo tornando-os cidadãos honrados de opinião respeitável. Uns indelicados que em cada duas palavras empregam três palavrões, têm dificuldade em cumprir horários e regras, cospem para o chão, urinam em qualquer canto, despacham todo o género de objetos para a rua e pela janela das viaturas fazendo dos espaços públicos lixeiras a céu aberto, são o exemplo acabado de quem nos pode dar lições de cidadania e civismo com duas pedras na mão.
Debaixo do apedrejamento público na mais humilhante e repugnante campanha persecutória para com os professores, conseguimos chegar a bom termo, cumprindo com o nosso dever com enorme responsabilidade e brio, sem prejudicar os nossos alunos que nunca deixámos de acompanhar, mesmo quando outros lhes falharam. Isto não faz de nós heróis, porque heróis já nós somos ao conseguirmos ser professores num país que nos tem tratado tão mal.
Independentemente de tudo aquilo que tanta gente altamente recomendável, de bons usos e costumes que não se coíbe em humilhar os professores, possa dizer sobre nós, nós cumprimos a nossa parte o melhor que pudemos, mesmo sem nos terem contabilizado como tempo de serviço o excelente trabalho que temos estado a desempenhar e que fizeram evoluir tanto um país que era pouco mais do que analfabeto.
Mais do que em palavras, a nossa resposta veio com trabalho de qualidade, como o demonstram os bons resultados alcançados pelos nossos alunos nos estudos internacionais de que já ninguém fala. Só é lamentável que este magnífico trabalho que os professores têm realizado, para toda esta gente de idoneidade duvidosa, simplesmente seja trabalho que não conta para nada e deva ser apagado.
Arrastando-me, consegui arranjar forças e coragem para não desistir e chegar ao fim da estrada. Levantaram-se mãos, mãos sem pedras para erguer os caídos, ajudando-nos uns aos outros a nos mantermos de pé e de cabeça levantada. Com nódoas, maltratados e esgotados, conseguimos resistir ao mais pérfido ataque feito a uma classe profissional de que há memória. Chegar de rastos não fez de nós uns vermes, pois esses estão marcados com poeira de pedra nas mãos e cobiça fácil escrita no rosto. Isso fez de nós uns resistentes.
Dizem-nos que somos fracos, mas como poderá isso ser se já não sentimos dor nas pedras que nada nos dizem de novo?
Dizem-nos que somos orgulhosos, quando nos olham de cima quando estamos pelo chão caídos.
Dizem-nos que fracassámos, mas fomos nós quem vos educou e formou… sendo vós a prova viva de que, em algum momento, nós falhámos.
Eu queria acreditar que tudo o que dizem de nós são apenas palavras vãs, mas as feridas que ainda não sararam e as cicatrizes que nos marcaram lembram-nos que há palavras que ferem desmedidamente mais do que um murro no estômago.
Pedras que fazem com que os algarismos “942” signifiquem tanto para nós. Por tudo isso não é de bom tom não saber entender a dor que encerram as pedras usando gracejos para confundir o seu significado com indicativos de telefone. Este número é o símbolo de um dos maiores valores e direitos conquistados em democracia – o direito ao trabalho com direitos. Um trabalho honesto que cumprimos e nos foi roubado, mas que jamais poderá ser desconsiderado e, muito menos, ridicularizado. O 942 simboliza o RESPEITO pelo trabalho, pelo nosso trabalho, um trabalho honesto no meio de um país corrompido.
Orgulhoso da profissão, só me cabe fazer aquilo que outros não foram capazes – FELICITO TODOS OS PROFESSORES!
Colegas que, mesmo magoados por esta miséria moral de um país ingrato que fecha os olhos aos corruptos e persegue quem trabalha, com enorme nobreza e coragem tudo fizeram para que os seus alunos conseguissem chegar ao fim de mais um ano letivo com todo o acompanhamento e instrução que lhes foi possível dar. Debaixo desta chuva de pedras que tivemos de carregar às costas e um conjunto de crianças e jovens ao colo, conseguir chegar ao final deste ano com o sentimento do dever cumprido, foi um feito prodigioso que não está ao alcance dos medíocres.
Poderão continuar a desbocar-se à vontade com palavras de despeito a atirar-nos pedras, mas não se cansem, pois, por mais que nos golpeiem, jamais conseguirão atingir a nossa DIGNIDADE profissional.
Parabéns a todos os professores portugueses por não terem sucumbido ao mais difícil ano das nossas vidas profissionais.
E quanto às pedras aguçadas que amavelmente nos atiraram, arrecadámo-las para um dia contarem a nossa história, UMA HISTÓRIA GUARDADA NA MEMÓRIA DAS PEDRAS.

Carlos Santos… em desabafo

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